quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Da cegueira sobre o ensaio

Da cegueira sobre o ensaio

Acatai da voz o poder que lhe é dado.
Curvai as miseráveis vértebras.
Ao chão!
Ao chão,


fitai os olhos ressecados:
não podeis chorar.

É pelo bem nobre que sofreis

(Por causa nobre é que vos perece a liberdade).
Nem sabeis vós que sois heróis cegamente.


Firmai as pernas!

Afrouxai os braços!
Posto que das firmes pernas
Há para voz assento;



Dos frouxos braços
Resulta à voz descanso.

Rio de Janeiro, novembro de 2011,

Conto curtinho

Era uma vez um homem, um carro e um semáforo.
O semáforo disse:
-- Pare!
-- Não! Respondeu o homem.

O carro, se quer, teve tempo de se pronunciar.

O maior veneno

O maior veneno
Ela chora.
Não há como sobreviver ao veneno da discórdia. Se deusas sucumbiram a ele, que chance nós havemos de ter. É lançada despercebidamente por alguém próximo, que tem acesso aos corações visados. E assim contamina pelo ouvido o coração e enegrece rapidamente a alma. Dentro do coração envenenado, depois de constatado o seu total domínio, a discórdia da à luz a sentimentos que logo assumem a forma de palavras grosseiras que machucam.
Dois amantes, num instante, se fazem estranhos. Um deles recebera na alma o negro veneno. A boca que docemente beijava, agora profere palavras amargas e espessas. Não mais juras de amor, nem cantos jubilosos, nem sorrisos, nem nada. Somente palavras negras tal qual o veneno que as gerara.
Daí o chorar dela, que sempre amou, que sempre serviu, que sempre foi mulher. Ferida na alma, que ainda alva, chora. E, se chora , é porque dói o amor que sente. Amor de mulher, de mãe.
Chora a morte do amor que por ela sentia seu homem. Vítima da discórdia foi esse amor. O coração, fonte de palavras hoje enegrecidas, já fora todo cheio de amor por ela.
O coração aquecido pelo amor fornecia à boca palavras quentes e tão puras que ela as tomava pela sua própria boca: beijos doces e cálidos. As mãos traziam sempre consigo um afago saudoso e os olhos explicitavam a verdade do amor.
Mas a flecha negra tinha de lhe perfurar o peito e depositar sordidamente o diabólico veneno  em tão apaixonado coração.
Daí a dor, daí o choro. Sofre a mulher! Como sofre?! Não sabe, porém, que o seu amor está ferido. O homem que lhe ataca está enfermo. Foi contaminado pela língua dos que porfiam. Cego e de alma amarga. Esse é o estado do que é mordido pela discórdia.  


(David Luz em 22/03/14)

Crônica de um cadáver

Crônica de um cadáver

Naquele dia o sol reinava soberano sobre a cidade. Não havia se quer uma nuvem que o impedisse de impor sua luz e seu calor sobre nós. À sombra das árvores, aves de rapina buscavam algum refresco, enquanto nós todos nos acumulávamos num corredor mal refrigerado do hospital.
Estávamos mortos. Logo apodreceríamos naquele corredor.
Uma mosca enorme e colorida voava sobre nós, como um bem-te-vi entorno do seu ninho. Tínhamos para ela um valor inestimado, o valor de um lar.
Oito horas antes, em minha casa, eu despertava feliz para mais um dia de dificuldades. Um banho frio. Higiene bucal. Cueca, calça, cinto, camisa, meia e tênis. Café, leite, pão e manteiga. Telejornal. Oração. Tchau!
Já na rua, dirigi-me a estação de ônibus. Dinheiro, bilhete, roleta. Espera, espera, espera. Então, o ônibus. Espremido, imprensado, mas no ônibus. Assistia ao engarrafamento pelo vidro do coletivo. Graças a Deus estava no ônibus! Espremido, imprensado, mas no ônibus.
Inesperadamente uma freada. Tudo gira! Estilhaços, gritos! Aos pouco, o silêncio mortal. Então, sirenes, ambulâncias, bombeiros, paramédicos, corredor de hospital.
Não havia ninguém que se importasse conosco. Exceto a mosca. Essa sim não nos abandonaria. Teríamos o seu amor até o último pedaço de carne. Estava decidida: éramos o seu lar, a sua pátria! Lutaria por cada pedacinho de matéria pútrida.
O acidente fatal ocorrerá devido ao sono tão inapropriado quanto provável de um motorista inusitado, um professor que, depois de lecionar ininterruptamente nos três turnos do dia anterior, passara a noite corrigindo avaliações. O cansaço do mestre acrescido da lentidão no transito só poderia ter resultado em uma coisa: dormida ao volante. E a dormida ao volante desencadeou toda a cena hollywoodiana: o carro cruzou o sinal vermelho, invadindo a pista exclusiva do BRT, o motorista do coletivo, na tentativa de desviar o veículo e evitar a colisão, perdeu o controle ao bater na mureta de proteção. O enorme coletivo, à semelhança de um trem, descarrilou. Ele capotou umas três ou quatro vezes, antes de se chocar com os pilares de um viaduto.
Morri na hora. Tive esmagamento do crânio, mas não perdi nem um pouco da massa cefálica. O que me conservou a memória e o espírito crítico.

 (David Luz)