Crônica
de um cadáver
Naquele dia o sol reinava
soberano sobre a cidade. Não havia se quer uma nuvem que o impedisse de impor
sua luz e seu calor sobre nós. À sombra das árvores, aves de rapina buscavam
algum refresco, enquanto nós todos nos acumulávamos num corredor mal
refrigerado do hospital.
Estávamos mortos. Logo
apodreceríamos naquele corredor.
Uma mosca enorme e colorida
voava sobre nós, como um bem-te-vi entorno do seu ninho. Tínhamos para ela um
valor inestimado, o valor de um lar.
Oito horas antes, em minha
casa, eu despertava feliz para mais um dia de dificuldades. Um banho frio.
Higiene bucal. Cueca, calça, cinto, camisa, meia e tênis. Café, leite, pão e
manteiga. Telejornal. Oração. Tchau!
Já na rua, dirigi-me a
estação de ônibus. Dinheiro, bilhete, roleta. Espera, espera, espera. Então, o
ônibus. Espremido, imprensado, mas no ônibus. Assistia ao engarrafamento pelo
vidro do coletivo. Graças a Deus estava no ônibus! Espremido, imprensado, mas
no ônibus.
Inesperadamente uma freada.
Tudo gira! Estilhaços, gritos! Aos pouco, o silêncio mortal. Então, sirenes, ambulâncias,
bombeiros, paramédicos, corredor de hospital.
Não havia ninguém que se
importasse conosco. Exceto a mosca. Essa sim não nos abandonaria. Teríamos o
seu amor até o último pedaço de carne. Estava decidida: éramos o seu lar, a sua
pátria! Lutaria por cada pedacinho de matéria pútrida.
O acidente fatal ocorrerá
devido ao sono tão inapropriado quanto provável de um motorista inusitado, um
professor que, depois de lecionar ininterruptamente nos três turnos do dia
anterior, passara a noite corrigindo avaliações. O cansaço do mestre acrescido
da lentidão no transito só poderia ter resultado em uma coisa: dormida ao
volante. E a dormida ao volante desencadeou toda a cena hollywoodiana: o carro
cruzou o sinal vermelho, invadindo a pista exclusiva do BRT, o motorista do
coletivo, na tentativa de desviar o veículo e evitar a colisão, perdeu o
controle ao bater na mureta de proteção. O enorme coletivo, à semelhança de um
trem, descarrilou. Ele capotou umas três ou quatro vezes, antes de se chocar
com os pilares de um viaduto.
Morri na hora. Tive
esmagamento do crânio, mas não perdi nem um pouco da massa cefálica. O que me
conservou a memória e o espírito crítico.
(David
Luz)