quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Crônica de um cadáver

Crônica de um cadáver

Naquele dia o sol reinava soberano sobre a cidade. Não havia se quer uma nuvem que o impedisse de impor sua luz e seu calor sobre nós. À sombra das árvores, aves de rapina buscavam algum refresco, enquanto nós todos nos acumulávamos num corredor mal refrigerado do hospital.
Estávamos mortos. Logo apodreceríamos naquele corredor.
Uma mosca enorme e colorida voava sobre nós, como um bem-te-vi entorno do seu ninho. Tínhamos para ela um valor inestimado, o valor de um lar.
Oito horas antes, em minha casa, eu despertava feliz para mais um dia de dificuldades. Um banho frio. Higiene bucal. Cueca, calça, cinto, camisa, meia e tênis. Café, leite, pão e manteiga. Telejornal. Oração. Tchau!
Já na rua, dirigi-me a estação de ônibus. Dinheiro, bilhete, roleta. Espera, espera, espera. Então, o ônibus. Espremido, imprensado, mas no ônibus. Assistia ao engarrafamento pelo vidro do coletivo. Graças a Deus estava no ônibus! Espremido, imprensado, mas no ônibus.
Inesperadamente uma freada. Tudo gira! Estilhaços, gritos! Aos pouco, o silêncio mortal. Então, sirenes, ambulâncias, bombeiros, paramédicos, corredor de hospital.
Não havia ninguém que se importasse conosco. Exceto a mosca. Essa sim não nos abandonaria. Teríamos o seu amor até o último pedaço de carne. Estava decidida: éramos o seu lar, a sua pátria! Lutaria por cada pedacinho de matéria pútrida.
O acidente fatal ocorrerá devido ao sono tão inapropriado quanto provável de um motorista inusitado, um professor que, depois de lecionar ininterruptamente nos três turnos do dia anterior, passara a noite corrigindo avaliações. O cansaço do mestre acrescido da lentidão no transito só poderia ter resultado em uma coisa: dormida ao volante. E a dormida ao volante desencadeou toda a cena hollywoodiana: o carro cruzou o sinal vermelho, invadindo a pista exclusiva do BRT, o motorista do coletivo, na tentativa de desviar o veículo e evitar a colisão, perdeu o controle ao bater na mureta de proteção. O enorme coletivo, à semelhança de um trem, descarrilou. Ele capotou umas três ou quatro vezes, antes de se chocar com os pilares de um viaduto.
Morri na hora. Tive esmagamento do crânio, mas não perdi nem um pouco da massa cefálica. O que me conservou a memória e o espírito crítico.

 (David Luz)

Nenhum comentário:

Postar um comentário